segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Pra não esquecer dos Anjos.

Gemidos de arte


I




Esta desilusão que me acabrunha


É mais traidora do que o foi Pilatos!...


Por causa disto, eu vivo pelos matos,


Magro, roendo a substância córnea da unha.




Tenho estremecimentos indecisos


E sinto, haurindo o tépido ar sereno,


O mesmo assombro que sentiu Parfeno


Quando arrancou os olhos de Dionisos!




Em giro e em redemoinho em mim caminham


Ríspidas mágoas estranguladores,


Tais quais, nos fortes fulcros, as tesouras


Brônzeas, também giram e redemoinham.




Os pães — filhos legítimos dos trigos —


Nutrem a geração do ódio e da Guerra...


Os cachorros anônimos da terra


São talvez os meus únicos amigos!




Ah! Por que desgraçada contingência


A híspida aresta sáxea áspera e abrupta


Da rocha brava, numa ininterrupta


Adesão, não prendi minha existência?!




Por que Jeová, maior do que Laplace,


Não fez cair o túmulo de Plínio


Por sobre todo o meu raciocínio


Para que eu nunca mais raciocinasse?!




Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles


Carinhos, com que guarda meus sapatos,


Por que me deu consciência dos meus atos


Para eu me arrepender de todos ele?!




Quisera, antes, mordendo glabros talos,


Nabucodonosor ser no Pau d'Arco,


Beber a acre e estagnada água do charco,


Dormir na manjedoura com os cavalos!




Mas a carne é que é humana! A alma é divina.


Dorme num leito de feridas, goza


O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,


Beija a peçonha, e não se contamina!




Ser homem! escapar de ser aborto!


Sair de um ventre inchado que se anoja,


Comprar vestidos pretos numa loja


E andar de luto pelo pai que é morto!




E por trezentos e sessenta dias


Trabalhar e comer! Martírios juntos!


Alimentar-se dos irmãos defuntos,


Chupar os ossos das alisarias




Barulho de mandíbulas e abdomens!


E vem-me com um desprezo por tudo isto


Uma vontade absurda de ser Cristo


Para sacrificar-me pelos homens!




Soberano desejo! Soberana


Ambição de construir para o homem uma


Região, onde não cuspa língua alguma


O óleo rançoso da saliva humana!




Uma região sem nódoas e sem lixos,


Subtraída à hediondez de ínfimo casco,


Onde a forca feroz coma o carrasco


E o olho do estuprador se encha de bichos!




Outras constelações e outros espaços


Em que, no agudo grau da última crise,


O braço do ladrão se paralise


E a mão da meretriz caia aos pedaços!




II




O sol agora é de um fulgor compacto,


E eu vou andando, cheio de chamusco,


Com a flexibilidade de um molusco,


Úmido, pegajoso e untuoso ao tacto!




Reunam-se em rebelião ardente e acesa


Todas as minhas forças emotivas


E armem ciladas como cobras vivas


Para despedaçar minha tristeza!




O sol de cima espiando a flora moça


Arda, fustigue, queime, corte, morda!...


Deleito a vista na verdura gorda


Que nas hastes delgadas se balouça!




Avisto o vulto das sombrias granjas


Perdidas no alto... Nos terrenos baixos,


Das laranjeiras eu admiro os cachos


E a ampla circunferência das laranjas.




Ladra furiosa a tribo dos podengos.


Olhando para as pútridas charnecas


Grita o exército avulso das marrecas


Na úmida copa dos bambus verdoengos.




Um pássaro alvo artífice da teia


De um ninho, salta, no árdego trabalho,


De árvore em árvore e de galho em galho,


Com a rapidez duma semicolcheia.




Em grandes semicírculos aduncos,


Entrançados, pelo ar, largando pêlos,


Voam à semelhança de cabelos


Os chicotes finíssimos dos juncos.




Os ventos vagabundos batem, bolem


Nas árvores. O ar cheira. A terra cheira...


E a alma dos vegetais rebenta inteira


De todos os corpúsculos do pólen.




A câmara nupcial de cada ovário


Se abre. No chão coleia a lagartixa.


Por toda a parte a seiva bruta esguicha


Num extravasamento involuntário.




Eu, depois de morrer, depois de tanta


Tristeza, quero, em vez do nome — Augusto,


Possuir aí o nome dum arbusto


Qualquer ou de qualquer obscura planta!




III




Pelo acidentadíssimo caminho


Faísca o sol. Nédios, batendo a cauda,


Urram os bois. O céu lembra uma lauda


Do mais incorruptível pergaminho.




Uma atmosfera má de incômoda hulha


Abafa o ambiente. O aziago ar morto a morte


Fede. O ardente calor da areia forte


Racha-me os pés como se fosse agulha.




Não sei que subterrânea e atra voz rouca.


Por saibros e por cem côncavos vales,


Como pela avenida das Mappales,


Me arrasta à casa do finado Tôca!




Todas as tardes a esta casa venho.


Aqui, outrora, sem conchego nobre,


Viveu, sentiu e amou este homem pobre


Que carregava canas para o engenho!




Nos outros tempos e nas outras eras,


Quantas flores! Agora, em vez de flores,


Os musgos, como exóticos pintores,


Pintam caretas verdes nas taperas.




Na bruta dispersão de vítreos cacos,


À dura luz do sol resplandecente,


Trôpega e antiga, uma parede doente


Mostra a cara medonha dos buracos.




O cupim negro. broca o âmago fino


Do teto. E traça trombas de elefantes


Com as circunvoluções extravagantes


Do seu complicadíssimo intestino.




O lodo, obscuro trepa-se nas portas.


Amontoadas em grossos feixes rijos,


As lagartixas dos esconderijos


Estão olhando aquelas coisas mortas!




Fico a pensar no Espírito disperso


Que, unindo a pedra ao gneiss e a árvore à criança,


Como um anel enorme de aliança,


Une todas as coisas do Universo!




E assim pensando, com a cabeça em brasas


Ante a fatalidade que me oprime,


julgo ver este Espírito sublime,


Chamando-me do sol com as suas asas!




Gosto do sol ignívomo e iracundo


Como o reptil gosta quando se molha


E na atra escuridão dos ares, olha


Melancolicamente para o mundo!




Essa alegria imaterializada.


Que por vezes me absorve, é o óbolo obscuro,


É o pedaço já podre de pão duro


Que o miserável recebeu na estrada!




Não são os cinco mil milhões de francos


Que a Alemanha pediu a Jules Favre...


É o dinheiro coberto de azinhavre


Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!




Seja este sol meu último consolo;


E o espírito infeliz que em mim se encarna


Se alegre ao sol, como quem raspa a sarna,


Só, com a misericórdia de um tijolo! ...




Tudo enfim a mesma órbita percorre


E as bocas vão beber o mesmo leite...


A lamparina quando falta o azeite


Morre, da mesma forma que o homem morre.




Súbito, arrebentando a horrenda calma,


Grito, e se grito é para que meu grito


Seja a revelação deste Infinito


Que eu trago encarcerado na minh'alma!




Sol brasileiro! Queima-me os destroços!


Quero assistir, aqui, sem pai que me ame,


De pé, à luz da consciência infame,


À carbonização dos próprios ossos!


Eu e Outras Poesias 36a edição.

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